28 de mai. de 2013

FICHAMENTO - POLICE SPOTS


Quinton, P.; Blan, N. e  Miller, J.  Police Stops, Decision-making and Practice. In: Police Research Series, Paper 130, Editor: Carole F. Willis, Home Office, London, 2000.

 

Fichamento

 

 

O texto trata do quarto relatório produzido a partir de uma pesquisa sobre abordagem policial, realizada pelo Home Office Policing and Reducing Crime Unit (do Setor de Investigação, Desenvolvimento e Direção de Estatística da Grã-Bretanha).  O relatório destacou a falta de confiança de grupos étnicos minoritários no procedimento das abordagens policiais e recomendou que a polícia realizasse um registro sobre todas as abordagens efetuadas.

 

Este relatório descreve quais são os procedimentos adotados pelos policiais durante as abordagens (procedimentos padrão) e destaca como tornar as abordagens mais legítimas. A pesquisa baseia-se em mais de 100 entrevistas com policiais e 340 horas de observação das operações realizadas pelos mesmos.

 

A legitimidade das abordagens, de acordo com o relatório, baseia-se em princípios interligados, tais como, confiança do abordado na ação policial, legalidade e eficácia do procedimento. O relatório mostra que a legitimidade é o princípio mais suscetível de ser colocado à prova quando se trata de abordagem. O relatório analisa, ainda, a forma como os policiais desenvolvem a “fundada suspeita” e os critérios utilizados para embasá-la. Outra questão que merece destaque é a conscientização dos policiais sobre as “boas práticas”, ou seja, o relatório mostra que alguns policiais têm clareza sobre o que efetivamente pode ser considerada uma boa prática. Eles sugerem que uma “boa prática”de abordagem é fundamentada em critérios prévios e realizada com respeito ao abordado. De acordo com o relatório, esses critérios ajudam a garantir a confiança da população nas ações policiais, bem como a legalidade e a eficácia dessas mesmas ações.

 

Muitas vezes, a rotina policial concentra-se na realização de abordagens originadas por ações ou comportamentos suspeitos de determinada pessoa. Embora este contato com a população seja um procedimento de rotina do trabalho policial, a pesquisa mostrou que ser abordado em grande parte das vezes, pode despertar constrangimento, ansiedade ou até mesmo medo nas pessoas (Stone e Pettigrew, 2000). Tendo em vista estes aspectos, não é possível que esta prática seja feita de forma descuidada, destaca o estudo.

 
 
O relatório examina, ainda, a legitimidade das abordagens nos seguintes termos:

- confiança da população nas ações policiais – se as abordagens são realizadas de forma justa e fundamentada;

- legalidade – se as abordagens são feitas ​​dentro das orientações destinadas a regular sua prática e (respeitando os procedimentos operacionais padrão);

- eficácia – se as abordagens conseguem atingir seus fins, tais como prisões, flagrantes, apreensões, etc.

 

A importância do relatório está na análise das origens da “fundada suspeita”. A pesquisa toca numa questão chave sobre as razões da abordagem policial: por que determinada pessoa é considerada suspeita e outra não?

 

As origens da Fundada Suspeita

 

As suspeitas segundo o estudo da polícia britânica são levantadas, de acordo com os seguintes fatores:

- aparência - faixa etária, roupas, tipos de veículos do abordado, etnia, etc.;

- comportamento – “atividade suspeita";

- tempo e lugar – quando as pessoas são consideradas suspeitas e onde estão no momento da abordagem.

 

O relatório é ainda muito substancial no que diz respeito aos posicionamentos dos policiais (como agem no processo de tomada de decisão) durante a realização das abordagens, em situações variadas e turnos diferentes. É interessante perceber não só o fluxo, mas também os focos de tensão sobre a abordagem. 

 
 

As boas práticas são definidas pelos policiais de acordo com os seguintes termos:

- resultados;

- procedimentos, e

- práticas bem sucedidas – quando o abordado é tratado com respeito e quando é apresentada uma justificativa para a abordagem.

 

Ressalte-se que o relatório considera o sucesso e o fracasso de uma boa prática, levando-se em conta se o abordado foi tratado com respeito e se tal abordagem resultou ou não em prisão. Uma má ação pode ser bem sucedida, segundo a tabela abaixo, se o policial mesmo tendo adotado o procedimento inadequado conseguiu efetuar a prisão do abordado. Por outro lado, essa mesma ação será considerada mal sucedida se a abordagem não resultou em prisão.  

 

 
Conclusões e recomendações

O relatório concluiu que a confiança da população nas ações policiais, a legalidade e a eficácia são princípios entrelaçados. A pesquisa aponta uma série de recomendações de diferentes níveis e esferas que estão relacionadas à:

-  Melhoria de gestão da própria polícia;

- Melhoria das práticas policiais principalmente no que se refere à “fundada suspeita”;

- Necessidade de uma clara definição sobre o que é “fundada suspeita”;

- Necessidade de fundamentação jurídica clara a respeito dos procedimentos para a realização da abordagem tendo em vista a existência de uma pluralidade de ações que fazem parte da rotina policial.

- Necessidade de investir em orientação, formação e capacitação constante para sensibilizar o efetivo policial sobre a abordagem e dirimir eventuais dúvidas sobre a noção de “fundada suspeita”.



EQUIPE – INSTITUTO SOU DA PAZ

4 de abr. de 2013

Os verbos da polícia




Há décadas as polícias têm forte preocupação e investimentos para controles internos; definidos como “políticas, procedimentos, atividades e mecanismos, desenvolvidos para assegurar que os objetivos da organização sejam atingidos e que eventos indesejáveis sejam prevenidos, detectados e corrigidos”. Dentre os eventos indesejáveis para os quais concorremos, o central é a “intervenção policial com resultado morte”.

Para que a população conheça e participe cada vez mais das políticas públicas de segurança fiz um decálogo de verbos que marcam a atividade policial:

1 - Preservar – se no texto constitucional ele aparece de forma privilegiada deve ser um indicativo para o policial de que esta ação é constitutiva de nossa missão;

2 – Prevenir – sobretudo para a Polícia Militar é o marcador de nossa razão de ser;

3 – Socorrer – ao primeiro sinal de perigo ou emergência o número lembrado no Brasil  é o 190 (na Europa é o 112, na África 116, na Oceania 119, na América do Norte 911);

4 – Fiscalizar – muitos não se dão conta que o ato de fiscalizar traz embutido os verbos orientar e ensinar;

5 – Proteger – a simples presença do policial já traz tranquilidade e uma sensação de segurança nas imediações;

6 – Defender – aqui o verbo refere-se a vida, a dignidade humana, as leis, a ordem e ao interesse público;

7 – Policiar – da polissemia deste verbo destaco a dimensão de vigiar, cuidar e zelar;

8 – Investigar – lembro que o mesmo verbo vale para o pesquisador, resta saber se o policial de fato tem recebido o mesmo prestígio de seu assemelhado universitário;

9 – Prever – é nosso dever antecipadamente ver problemas e perigos sociais e trabalhar com prognósticos; e

10 – Comandar – várias atividades e ações são levadas a efeito pela PM com parceiras, convênios, representatividade junto aos Conseg e outras formas de “mandar com”.

Pensei aqui a vontade geral, ou seja, aquela que pode dirigir as forças do Estado de acordo com a finalidade de sua criação original que é o bem comum.


Ronilson de Souza Luiz, capitão da PM, mestre e doutor em educação – profronilson@gmail.com

4 de mar. de 2013

Abordagem policial: busca pessoal e direitos humanos


 

Por Adilson Franco Nassaro (*)

RESUMO: identifica a dimensão das expressões "abordagem policial" e "busca pessoal" e analisa a evolução do instituto no universo jurídico, diante dos direitos humanos, apresentando a noção de relatividade dos direitos individuais em face do interesse público. Estuda o direito à intimidade frente à busca pessoal e a devida harmonização que há de existir entre as ações do poder público e a garantia dos direitos individuais. Defende o argumento de que a busca pessoal constitui ato administrativo próprio de polícia, no exercício de missão constitucional e, como ato discricionário, está sujeito a limites a fim de que os direitos individuais sejam ao máximo respeitados e o agente não incorra na prática de abuso de autoridade.


SUMÁRIO: 1. Considerações sobre abordagem policial e busca pessoal. 2. Evolução do procedimento policial e o reconhecimento dos direitos humanos. 3. Noção de relatividade dos direitos individuais diante do interesse público. 4. A questão do respeito à intimidade. 5. Conclusões sobre possíveis casos de abuso de autoridade.



1.            Considerações sobre abordagem policial e busca pessoal

No universo dos conhecimentos técnico-policiais e também na linguagem jurídica comum, a expressão "abordagem policial" é identificada normalmente pelo instituto da busca pessoal. Tal interpretação generalizante é aceitável quando a análise do procedimento se mantém no plano superficial. No entanto, com maior rigor técnico e na área da doutrina aplicada à prática policial que evolui para o campo atual das "Ciências Policiais", dispõe-se que a abordagem policial envolve momentos distintos, reconhecíveis de um modo geral como: ordem de parada; busca pessoal propriamente dita; identificação (com consultas); e eventual condução do revistado, no caso de constatação de prática de infração penal.
Em razão da dinâmica própria do policiamento preventivo, admite-se a existência de abordagem (note-se, sem o complemento), circunstancialmente voltada à identificação, ou mesmo à simples transmissão de um alerta, de uma recomendação ou orientação ao abordado, portanto, sem realização de busca pessoal. Ainda, a palavra "abordagem", muitas vezes é utilizada para descrever apenas a ação inicial de aproximação e ordem de parada em vista de veículo ou pessoa em movimento, para qualquer que seja a sua finalidade, em razão do próprio significado geral da palavra "abordar" constante em dicionários de língua portuguesa, como: "chegar à beira ou borda de; acometer; achegar-se, aproximar-se". O que define se essas "abordagens" são propriamente "policiais" é o objetivo que se pretende alcançar com a ação e, naturalmente, a condição de serem realizadas por agente policial.



Propõe-se, por esse motivo, o uso uniforme da expressão "abordagem policial", em amplo sentido envolvendo as três ou quatro etapas descritas (ordem de parada, busca pessoal, identificação e eventual condução) e somente em estrito sentido como sinônimo de busca pessoal, que corresponde exatamente ao núcleo do procedimento, a parte mais relevante da intervenção policial. Essa postura interpretativa se harmoniza com a análise legal da ação, levando em conta a previsão do instituto no ordenamento jurídico - nomeado busca pessoal - e a sua fundamentação na missão constitucional do agente público ou no cumprimento de norma processual penal, ou mesmo na soma dos dois suportes legais.
De fato, o Código de Processo Penal brasileiro, Decreto-lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941, estabelece duas modalidades de "busca" no seu art. 240, quais sejam, a domiciliar e a pessoal. Por tratar-se de ação que inevitavelmente impõe restrição de direitos individuais em qualquer das duas espécies, somente deve ser concretizada em situação de razoável equilíbrio entre o interesse da ordem pública e os direitos e garantias individuais, ambos de fundamento constitucional.
Portanto, para realização da busca pessoal impõe-se a preservação, na medida do possível e do necessário, das garantias de prescrição genérica, identificadas pelo respeito à intimidade, à vida privada e à integridade física e moral do indivíduo, estabelecidas em pelo menos quatro dos incisos do mesmo artigo (art. 5º), da CF, quais sejam:
Inciso III: ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano
ou degradante;
Inciso X: são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
Inciso XV: é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz...;
Inciso XLIX: é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.
Já indicamos, em estudo anterior, que a busca pessoal, ou "revista" que é seu sinônimo, pode ser classificada como "preventiva" ou "processual", de acordo com o momento em que é realizada, bem como a sua finalidade, identificando-se a natureza jurídica do ato. Antes da efetiva constatação da prática delituosa, ela é realizada por iniciativa de autoridade policial competente e constitui ato legitimado pelo exercício do poder de polícia, na esfera de atuação da Administração Pública, com objetivo preventivo (busca pessoal preventiva). Realizada após a prática, ou em seguida à constatação da prática criminosa, ainda que como seqüência da busca preventiva, tenciona normalmente atender ao interesse processual (busca pessoal processual), para a obtenção de objetos necessários ou relevantes à prova de infração, ou mesmo à defesa do réu (alínea e, do parágrafo 1º, do art. 240 do CPP). [01]
Durante a abordagem policial comum ocorre a restrição abrupta da liberdade de locomoção, que evidentemente não se amolda à conduta de cárcere privado, em que pese privação momentânea do "direito de ir e vir". Também não há tipo penal específico para a proteção da intimidade (no aspecto físico e pessoal) e igualmente para a intangibilidade corporal, que são objetos jurídicos de sentido diverso da liberdade sexual. Na caracterização de conduta exorbitante, ou seja, com excesso, utiliza-se geralmente a descrição de abuso de autoridade de agente público no exercício da função (Lei 4.898/65).
Enfim, existem diversos níveis de busca pessoal, verificados de modo proporcional ao fator de sua motivação em cada hipótese, decorrendo, obviamente, maior ou menor nível de necessária restrição de direitos individuais; todavia, podem ser simplificados em duas espécies, sob a seguinte classificação: busca pessoal preliminar (ou superficial) e busca pessoal minuciosa (ou íntima). A percepção do nível adequado está vinculada ao momento da realização da busca, diante das circunstâncias da situação específica, bem como a sua finalidade, observado o grau de suspeita na avaliação do agente com competência legal na área de polícia de segurança, no exercício do chamado poder de polícia que lhe é próprio.
Daí a importância de se verificar quais os parâmetros que devem nortear a conduta do agente responsável pela busca pessoal, na prática de ato discricionário característico do procedimento da abordagem policial, e no permanente esforço de harmonização da intervenção restritiva com o conjunto dos direitos e garantias individuais consagrados na Constituição Federal, diante do caso concreto.
A análise histórica do desenvolvimento da ação de busca e o reconhecimento dos direitos individuais, também auxilia na compreensão da imprescindibilidade da intervenção policial, no campo da prevenção, para a garantia da segurança pública.


2. Evolução do procedimento policial e do reconhecimento dos direitos humanos
O primeiro relato da realização de uma legítima busca pessoal, durante uma abordagem policial, encontra-se no Livro do Gênesis, parte III, "A História de José", da Bíblia Sagrada.
José, que ocupava um dos mais altos postos da hierarquia do Egito e ainda não havia revelado sua identidade aos irmãos que vieram buscar trigo, determinou ao oficial intendente que no deslocamento da volta procedesse à busca em seus irmãos, particularmente nos seus sacos de viagem. José sabia que seria encontrada no saco de viagem transportado por Benjamim - o mais novo - uma taça de prata, pois a havia ali ocultado, a fim de observar as reações dos irmãos depois que o valioso objeto fosse descoberto durante a busca.
Ao serem abordados, os irmãos negaram a prática de furto e não ofereceram resistência à revista. O intendente, então, lhes proferiu algumas palavras e procedeu à busca, conforme segue:
‘Seja como dissestes! Aquele com quem for encontrada a taça será meu escravo. Vós outros sereis livres’. E, imediatamente, pôs cada um o seu saco por terra e o abriu. O intendente revistou-os começando pelo mais velho e acabando pelo mais novo; e a taça foi encontrada no saco de Benjamim" (Livro do Gênesis, parte III, Capítulo 44, versículos 10-12). [02]
Trata-se de um raro relato, pois, desde a Antigüidade, a busca pessoal acompanhava usualmente o procedimento da busca domiciliar como sua conseqüência, em razão de que não faria sentido revistar tão-somente uma pessoa e, não se encontrando o que era procurado, desistir da diligência. Isso porque a ocultação do objeto buscado já poderia ter sido realizada no interior da casa daquele sobre quem recaia a suspeita da subtração mediante furto, por exemplo.
No caso do referido texto bíblico, como situação excepcional, havia a certeza de que o objeto procurado - a taça - não estaria na casa dos irmãos de José, pois, naquela ocasião, eles se encontravam em viagem para trazer trigo do Egito e longe de seus domicílios, motivo pelo qual foi realizada exclusivamente a busca pessoal.
A busca domiciliar era o procedimento utilizado, em regra, para que fosse verificado se alguém ocultava consigo o que se suspeitava ter sido indevidamente retirado de outra pessoa. Por sinal, não é exagero afirmar que no antigo direito romano dispensava-se maior proteção à casa do que ao próprio corpo do indivíduo. A casa era o símbolo da identidade da pessoa, do grupo familiar liderado pela figura do paterfamilias e também era o ambiente do culto sagrado dos antepassados, dos mortos que recebiam na cerimônia do "fogo sagrado" - chamado "lar" - a oferenda doméstica como garantia de sua memória e do seu descanso eterno [03].
Em contraposição a essa sacralização do ambiente do lar - entenda-se interior da casa - e o respeito à propriedade que identificava o grupo familiar, o corpo do cidadão, em sua individualidade, não era considerado de igual importância, tanto que no antigo direito romano o corpo do devedor respondia pela sua dívida. Tal situação ilustra bem a condição de menor respeito à intimidade representada pelo corpo em relação a casa e a propriedade familiar, como explica Fustel de Coulanges:
A lei das Doze Tábuas não poupa, seguramente, o devedor, mas recusa, no entanto, que a sua propriedade seja confiscada em proveito do credor. O corpo do homem responde pela dívida, não a sua terra, porque esta se prende, inseparável, à família. Será mais fácil colocar o homem na servidão do que tirar-lhe um direito de propriedade pertencente mais à família do que a ele próprio; o devedor está nas mãos do seu credor; a sua terra, sob qualquer forma, acompanha-o na escravidão. [04]
Também no direito romano cabia ao lesado a iniciativa para a apuração e punição dos delitos privados, incluindo-se as subtrações indevidas. Nesse contexto, a busca domiciliar foi praticamente regulamentada na Lei das XII Tábuas, quando estabeleceu que a diligência devia ser realizada pelo interessado, em ato solene, ingressando nu na casa de quem recaía a suspeita, apenas protegido por um cinto, em respeito ao pudor alheio, e portando nas mãos um prato para nele colocar o objeto encontrado e também para demonstrar que em suas mãos nada mais trazia (Tábua VIII, "Dos Delitos", Número XV). [05]
A busca pessoal seria então realizada como conseqüência do ato solene de entrada na casa, respeitado o ritual que a condicionava, no caso dos delitos privados, já que o corpo recebia menor proteção que a casa, conforme se demonstrou, ou ainda mediante consentimento daquele sobre quem pesava a suspeita. Quanto aos delitos que lesavam a coletividade, perseguidos pelo poder público - delitos públicos -, dava-se a busca tanto na esfera domiciliar quanto pessoal em conjunto e, de modo geral, por imposição de autoridade constituída.
Quanto à busca pessoal preventiva para acesso a ambiente restrito, existe relato, também da Antiguidade, que demonstra a associação do procedimento a algo desagradável e ainda assim imposto, no caso para a entrada no palácio de um rei, conforme o discurso Panegírico de Isócrates, publicado na Grécia em 380 a.C. para ser divulgado no período das Olimpíadas, em Olímpia precisamente, fazendo elogio aos helenos em relação aos bárbaros da Ásia, povos governados por persas, "em que apenas um tem todo o poder":
Estes ‘mergulham’ no luxo como consequência de sua riqueza, têm a alma humilhada e assombrada pela monarquia, se deixam revistar à porta do palácio, se prostram diante do rei, sofrem todo tipo de humilhação adorando um mortal que chamam de deus, mas se preocupando menos com sua divindade do que com as honras (...) [06]
Retornando à questão da busca processual, já na Idade Média com a predominância do processo penal canônico, verificou-se uma transformação do sistema acusatório para o inquisitivo e, a partir desse momento, deixaram de ser observadas quaisquer prerrogativas individuais. Como ensina Tourinho Filho:
Até o século XII, o processo era de tipo acusatório: não havia juízo sem acusação. O acusador devia apresentar aos Bispos, Arcebispos ou Oficiais encarregados de exercerem a função jurisdicional a acusação por escrito e oferecer as respectivas provas. Punia-se a calúnia. Não se podia processar o acusado ausente. Do século XIII em diante, desprezou-se o sistema acusatório, estabelecendo-se o ‘inquisitivo’. Muito embora Inocêncio III houvesse consagrado o princípio de que Tribus modis processi possit: per accusationem, per denuntiationem et per inquisitionem, o certo é que somente as denúncias anônimas e a inquisição se generalizaram, culminando o processo inquisitivo, per inquisitionem, em tornar-se comum. [07]
Ainda que partindo de "denúncia" anônima, a inquisição apresentava uma implacável busca à condenação do chamado "herege", sem o mínimo respeito à integridade física e psíquica do "acusado", pois se utilizava inclusive do expediente da tortura para obtenção da confissão. No curso dessa "busca de condenação", a busca domiciliar e a pessoal não eram condicionadas à qualquer justificativa a partir da conclusão da rápida instrução preparatória, mesmo sem a presença do "acusado", como indica José Geraldo da Silva:
O processo inquisitório surgiu com o Concílio de Latrão, em 1215, e possibilitava o procedimento de ofício, sem necessidade de prévia acusação, pública ou privada. O termo inquisição vem do latim inquirere, inquirir. Compõe-se de duas outras palavras latinas: in (em), e quaero (buscar). Portanto, a inquisição é uma busca, uma investigação (...) Se a instrução preparatória fornecia a prova do delito, os inquisidores ordenavam a prisão do acusado, ao qual já não protegiam nem privilégios nem asilo. Depois de preso, ninguém mais se comunicava com ele; procedia-se à visita do seu domicílio e fazia-se o seqüestro de seus bens. [08]
Exemplo desse proceder foi descrito pelo historiador Carlo Ginzburg, na pesquisa que reconstituiu o processo a que respondeu o moleiro Domenico Scandella, conhecido por Menocchio, de Montereale, a partir de denúncia ao Santo Ofício, em 1583, depois de ter pronunciado palavras consideradas "heréticas e totalmente ímpias", em região identificada ao norte da atual Itália: "No momento da prisão, o vigário-geral mandou que revistassem sua casa". Já ao final de um segundo "processo", em torno de 1601, antes da execução de sua morte na fogueira, "todos os seus livros e ‘escritos’ foram confiscados". [09]
Superada essa difícil fase da história, iniciou-se a Idade Moderna caracterizada pelo absolutismo que foi o sistema de governo da maioria dos Estados europeus entre os séculos XVII e XVIII, quando o poder era exercido de modo centralizado pelo monarca e sustentado por uma burguesia emergente. E foi somente no século XVIII que surgiu um período de luzes, com um movimento de defesa do predomínio da razão sobre a fé, estabelecendo o progresso como destino da humanidade: o Iluminismo.
Representando a visão intelectual da época, essa corrente alcançou grande repercussão na França, onde enfim se opõe às injustiças sociais, aos privilégios da aristocracia decadente e também à intolerância religiosa. Também, abriu caminho para a Revolução Francesa que veio a se inflamar em 1789 e marcou o início da Idade Contemporânea, oferecendo-lhe o lema que sintetizou a mudança então clamada: "Liberdade, Igualdade e Fraternidade".
Um dos principais idealizadores desse pensamento foi Jean-Jacques Rousseau, que defendeu o respeito à igualdade, no exercício dos direitos individuais, reconhecendo a existência de um verdadeiro "contrato social" que estabelece que cada cidadão abre mão de uma pequena parcela da sua liberdade individual, a fim de que o Estado, representando a vontade geral em seus atos de controle, viabilize a convivência pacífica, com base no exercício da liberdade civil e respeito à propriedade. Em sua obra máxima, de 1762, "O Contrato Social", oferece lições precisas desse novo pensamento:
Limitemos tudo isso a termos fáceis de comparar. O que o homem perde pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo o que lhe diz respeito e pode alcançar. O que ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui... De qualquer modo que remontemos ao começo, chegaremos sempre à mesma conclusão, a saber: que o pacto social estabelece entre os cidadãos tal igualdade, que todos se obrigam sob as mesmas condições e devem gozar dos mesmos direitos. Assim, pela natureza do pacto, todo ato de soberania, isto é, todo ato autêntico da vontade geral, obriga ou favorece igualmente a todos os cidadãos. [10]
Influenciado pelos escritores dessa época, Cesare Beccaria, lança em 1764 a sua obra: "Dos delitos e das penas", proclamando o princípio da igualdade perante a lei, com enfoque na norma penal. O autor estabelece limites entre a justiça humana e a justiça divina, ou seja, entre o pecado e o crime; condena a reivindicação do direito de vingança, com o fortalecimento do jus puniendi, baseado na sua utilidade social, além da devida proporcionalidade entre o delito e a sanção e tantas outras idéias que vieram a fortalecer o sentido de justiça aplicada ao indivíduo como sujeito de direitos inalienáveis, inserido no contexto de uma sociedade organizada e equilibrada mediante o respeito às regras de convivência derivadas do contrato social.
Beccaria tece críticas ao sistema que não acolhia a pretensão ou garantia de respeito ao acusado ou suspeito, indagando:
Quem, ao ler a história, não se horripila diante dos bárbaros e inúteis tormentos, friamente criados e executados, por homens que se diziam sábios? Quem não estremecerá, até em sua célula mais sensível, ao ver milhares de infelizes que a miséria provocada ou tolerada por leis que sempre favoreceram a minoria e prejudicaram a maioria, forçou a desesperado regresso ao primitivo estado da natureza, ou acusados de delitos impossíveis, criados pela tímida ignorância, ou réus julgados culpados apenas pela fidelidade aos próprios princípios, esses infelizes acabam mutilados por lentas torturas e premeditadas formalidades, oriundas de homens dotados dos mesmos sentimentos e, por conseguinte, das mesmas paixões, em alegre espetáculo para a fanática multidão? [11]
Verifica-se, a partir dessa fase, uma acentuada evolução quanto ao reconhecimento dos direitos e garantias individuais, mediante o respeito ao ser individual e o desenvolvimento de um novo conceito: o da inviolabilidade pessoal, com base no aspecto físico, que diz respeito à intangibilidade corporal e também no aspecto moral, quanto à preservação da intimidade e da vida privada.
A noção do que sejam os "direitos humanos" surge inicialmente permeada pela idéia de direito natural, ou seja, os que podem ser deduzidos da própria natureza do ser humano. Nesse sentido, a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, relaciona como direitos naturais e inalienáveis, dentre outros, a liberdade, a propriedade, a resistência à opressão e a segurança. Importante notar que, dentre os dezessete artigos dessa histórica Declaração votada e aprovada no mês seguinte à Tomada da Bastilha, respectivamente nos dias 20 e 26 de agosto, e tendo por redatores principais Mirabeau e Sieyès, se encontra uma previsão muito especial para a sustentação da garantia dos direitos do homem e do cidadão: a necessidade da criação de uma chamada "força pública" (force publique), que foi incluída em seu artigo 12. [12]
Ainda, a oposição dos direitos individuais em face da atuação do Estado, até então absoluto, como fator de sua limitação é observada por Sylvia Helena de Figueiredo Steiner, ao tratar da evolução dos instrumentos internacionais de proteção aos indivíduos:
Na era moderna, grande parte das normas contidas nas Declarações de Direitos dizem exatamente com os limites da atuação do Estado na invasão da esfera de liberdade dos indivíduos. E essa invasão se torna mais sensível quando o Estado exerce seu poder-dever de repressão a condutas que atingem a comunidade. [13]
Segue-se, então, a internacionalização das normas de proteção aos direitos individuais em oposição ao poder do Estado, em curso de evolução que se interrompeu a partir do início da I Grande Guerra Mundial e foi retomado em 1919, com o Tratado de Versalhes que estabeleceu a Liga das Nações e a Corte Permanente de Justiça, como registra a mesma autora:
Não há dúvidas de que o Tratado de Versalhes, ao criar o primeiro corpo de organizações internacionais permanentes para regulamentação e controle das relações entre os Estados, e entre o Estados e os indivíduos, em tempo de paz, pode ser considerado um grande passo na internacionalização dos direitos humanos. [14]
Após a segunda Grande Guerra, iniciou-se um processo de submissão das nações a compromissos de proteção e garantia dos direitos da pessoa, como decorrência do fim do conflito mundial. Surge, inicialmente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que traz como princípios gerais a liberdade, a igualdade, a não discriminação e a fraternidade, além de prescrições sobre os direitos e liberdades de ordem pessoal, sobre direitos do indivíduo nas suas relações sociais, dentre outras.
Essa Declaração motivou a elaboração de outros instrumentos internacionais aos quais se vincularam nações não integrantes das Nações Unidas, hoje de grande influência no ordenamento jurídico dos países a eles submetidos.
Finalizando essa breve digressão, grande parte dos ordenamentos jurídicos dos países da comunidade internacional identifica a separação da busca pessoal em relação à busca domiciliar, reconhecendo a intervenção policial como de iniciativa própria, na condição de medida necessária, sempre em equilíbrio com os direitos e garantias individuais. Esses direitos inalienáveis encontram-se estabelecidos na Constituição Federal, no caso do Brasil e de vários outros países, como conseqüência da evolução histórica de sua própria organização social e a recepção de normas que devem ser consideradas pelo seu valor universal. Verifica-se, na mesma trilha, o posicionamento do Estado como exclusivo detentor do jus puniendi, o reconhecimento da igualdade de todos perante a lei, a atuação legítima da Força Pública e, também, o desenvolvimento da noção de inviolabilidade pessoal ao longo dos tempos, observada a sua relatividade.


3. Noção de relatividade dos direitos individuais diante do interesse público
Tal como os demais instrumentos internacionais de proteção aos direitos individuais, a Declaração Universal dos Direitos Humanos não prescreve direitos absolutos. Enquanto, por exemplo, em seu artigo V, declara que "ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante", o item 2, do seu artigo XXIX estabelece que:
No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas as limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem, e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. [15]
A Constituição Federal de 1988, no Brasil, foi fortemente influenciada pelos instrumentos internacionais de proteção aos direitos individuais, particularmente no seu art. 5º, em que se verificam garantias da inviolabilidade domiciliar (inciso XI) e da inviolabilidade pessoal, impondo o devido respeito à intimidade, à vida privada e à integridade física e moral do indivíduo (incisos III, X e XLIX).
Todavia, no exercício de missão também de dimensão constitucional, e no âmbito de suas atribuições, o policial pratica atos que naturalmente restringem liberdades individuais, na esfera administrativa de ação do Poder Público, particularmente no caso da comum abordagem policial com busca pessoal, exercendo o poder de polícia com requisitos e limitações próprias[16]. Nesse ponto, é importante lembrar a lição de Álvaro Lazzarini:
O ato de polícia administrativa ou ato de polícia preventiva, como exteriorização do Poder de Polícia da Administração Pública, tem a mesma infra-estrutura de qualquer outro ato administrativo. Nele se encerra a manifestação do "Poder de Polícia" e, assim, para ser válido, o ato de polícia deve partir de órgão competente, tendo em vista a realização do bem comum, observando a forma que lhe for peculiar e que poderá ser a escrita, verbal ou simbólica, tudo diante de uma situação de fato e de direito que diga respeito à atividade policiada, devendo, finalmente, ser lícito o seu objeto. Em outras palavras, como qualquer outro ato administrativo, o de polícia deve conter os requisitos da competência, finalidade, forma, motivo e objeto.[17]
A noção de limitação de direito, interesse ou liberdade é integrante exatamente do conceito de "poder de polícia", apresentado na sua forma genérica, no art. 78 do Código Tributário Nacional, nos seguintes termos:
Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. [18]
De acordo com Hely Lopes Meirelles, o ato de polícia possui três atributos básicos: discricionariedade, auto-executoriedade e coercibilidade [19], ou seja, caracteriza-se pela livre escolha da oportunidade e da conveniência do exercício do poder de polícia, além dos meios necessários à sua consecução, pela execução direta e imediata da decisão, sem necessidade de participação do Poder Judiciário, bem como, pela imposição de medidas de modo coativo.
Para que o policial não pratique ato arbitrário, que consiste em posicionamento antagônico à prática de ato discricionário, deve ter a noção exata dos contornos legais da discricionariedade. Ainda que a Administração disponha de certa margem de discricionariedade no seu exercício, os fins, a competência do agente, o procedimento (sua forma) e também os motivos e o objeto são limites impostos ao ato de polícia, conforme adverte Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em elucidativa exposição:
Quanto aos fins, o poder de polícia só deve ser exercido para atender o interesse público. Se o seu fundamento é precisamente o princípio da predominância do direito público sobre o particular, o exercício desse poder perderá a sua justificativa quando utilizado para beneficiar ou prejudicar pessoas determinadas; a autoridade que se afastar da finalidade pública incidirá em desvio de poder e acarretará a nulidade do ato com todas as conseqüências nas esferas civil, penal e administrativa. A competência e o procedimento devem observar as normas legais pertinentes. Quanto ao objeto, ou seja, quanto ao meio de ação, a autoridade sofre limitações, mesmo quando a lei lhe dê várias alternativas possíveis. Tem aqui aplicação um princípio de direito administrativo, a saber, o da proporcionalidade dos meios aos fins; isto equivale a dizer que o poder de polícia não deve ir além do necessário para a satisfação do interesse público que visa proteger; a sua finalidade não é destruir os direitos individuais, mas, ao contrário, assegurar o seu exercício, condicionando-o ao bem-estar social; só poderá reduzi-los quando em conflito com interesses maiores da coletividade e na medida estritamente necessária à consecução dos fins estatais. [20]
Portanto, a busca pessoal e a veicular, como seu desdobramento, constitui ato administrativo, enquanto ato próprio de polícia. No campo da polícia preventiva é fundamentada na competência constitucional para iniciativas que garantam a preservação da ordem pública. Também o policial competente pode - e deve por questão lógica - realizá-la em face do autor de um delito, ou durante sua prisão em flagrante, no contexto da repressão imediata, nesse caso caracterizada como busca pessoal processual.
Ainda, tratando-se de busca preventiva individual, ou seja, aquela realizada antes da constatação da prática de infração penal e mediante seleção de quem será revistado, existe o fundamento do art. 244 do Código de Processo Penal, para a ação policial com base em "fundada suspeita", sem mandado judicial [21].
Mesmo considerando que as garantias individuais representam também limitação ao poder do Estado, o que é fundamento histórico das Constituições, pode-se concluir que não são elas (as garantias individuais) absolutas quando se trata da realização da busca pessoal e de outros procedimentos imprescindíveis para a ordem pública e o bem-estar social, previstos em lei. Deve ocorrer, naturalmente, que alguns direitos individuais cedam espaço ao interesse maior da sociedade, no limite do que seja necessário e razoável à realização do bem comum.
Trata-se, na realidade, de equilibrar e garantir direitos individuais de mesmo nível e dignidade constitucional, no caso, a inviolabilidade domiciliar e a pessoal e a segurança devida a todo cidadão (caput do art. 5º, da CF). É este o sentido do artigo XXVIII, da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de 1948, quando estabelece que: "Os direitos do homem estão limitados pelos direitos do próximo, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem-estar geral e do desenvolvimento democrático". [22]


4. A questão do respeito à intimidade
A invasão da intimidade e da vida particular, que também é um dos aspectos da intimidade em sentido amplo, traz prejuízo moral objetivo (como o indivíduo é visto por seus pares) e moral subjetivo (como o próprio indivíduo se vê, no convívio social).
A intimidade foi objeto de análise por Paulo José da Costa Júnior, que defendeu a necessidade de tutela penal desse direito individual garantido pelo inciso X, do art. 5º, da CF, conforme registrou em sua obra "O Direito de Estar Só". O penalista apresentou o seguinte conceito para o que denominou intimidade exterior:
é aquela de natureza psíquica. O homem a estabelece no burburinho da multidão. Ensimesmando-se em pleno tumulto coletivo. Decretando-se alheio, impenetrável às solicitações dos que o rodeiam. Presente e ausente. Rodeado e só. [23]
Nessa linha de raciocínio, a abordagem policial invadiria primeiramente a intimidade exterior do indivíduo que, apesar de se encontrar em público, não se vê normalmente obrigado a travar relações interpessoais além do que lhe seja necessário ou oportuno. Quem nunca foi abordado em público, não necessariamente pela polícia, e não se sentiu invadido em sua intimidade ou privacidade?
Identificando as esferas individual e privada, relacionadas à intimidade, ainda o autor observa que:
Em correspondência com sua natural divisão em ser individual e ser social, o homem vive como personalidade em esferas diversas: numa esfera individual e noutra esfera privada.
Assim, o homem, como pessoa, procura satisfazer dois interesses fundamentais: enquanto indivíduo, o interesse por uma livre existência; enquanto co-partícipe do consórcio humano, o interesse por um livre desenvolvimento na vida de relação.
Os direitos que se destinam à proteção da ‘esfera individual’ servem à proteção da personalidade, dentro da vida pública. Na proteção da ‘vida privada’, ao contrário, cogita-se da inviolabilidade da personalidade dentro do seu retiro necessário ao seu desenvolvimento e evolução, em seu mundo particular, à margem da vida exterior.
Estabelece-se, dessarte, a diferença entre a ‘esfera individual’ (proteção à honra) e a ‘esfera privada’ (proteção contra a indiscrição). [24]
Por esse entendimento, a violabilidade pessoal verificada na busca pessoal pode atingir a esfera individual e a esfera privada daquele que é submetido à revista.
A garantia constitucional prevista no inciso X, do art. 5º, da CF, estabeleceu proteção à "intimidade" e à "vida privada". Entendemos que a primeira é dirigida às informações pessoais que cada um pode resguardar como expressão da sua personalidade, inclusive quanto à revelação da imagem do próprio corpo e da sua tangibilidade (física); já a segunda, a inviolabilidade da vida privada, defende a reserva dos aspectos íntimos da vida particular, que pressupõe o envolvimento restrito de algumas pessoas, primeiramente quanto ao seu conhecimento e, em segundo momento, contra a indiscrição, ou seja, a divulgação dessas informações. Ocorre que algumas informações dizem respeito tanto à intimidade quanto à vida privada (em sentido estrito) do indivíduo, não sendo possível, por vezes, dissociar esses dois enfoques, razão pela qual é verificada a tendência de utilização comum da expressão: "intimidade e privacidade", tendo a privacidade, nesse caso, o mesmo sentido de "vida privada".
Portanto, a busca pessoal restringe o direito de intimidade e também da vida privada, em diversos níveis, além da honra do revistado, como aspectos pessoais de complexa análise para efeito de mensuração. Caso o procedimento policial seja fotografado, filmado ou registrado em imagem por qualquer outro meio, sem a autorização do revistado, de modo a possibilitar a sua identificação, ocorrerá, também, violação da imagem dessa pessoa, dependendo do uso a que for destinado esse registro, ainda na interpretação do mesmo dispositivo constitucional.
Não significa, absolutamente, impossibilidade legal de se proceder a busca pessoal. Assim como se dá com as demais garantias constitucionais, o que ocorre é uma harmonização entre os direitos individuais e o interesse geral, representado pelo almejado bem comum, lembrando que todos têm também direito à segurança.
Nessa mesma avaliação e linha de raciocínio, quanto à necessária conciliação dos direitos estabelecidos na Constituição, registra-se a preciosa conclusão de José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira, nos seguintes termos:
Os direitos fundamentais só podem ser restringidos quando tal se torne indispensável, e no mínimo necessário, para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
No fundo, a problemática da restrição dos direitos fundamentais supõe sempre um conflito positivo de normas constitucionais, a saber entre um norma consagradora de certo direito fundamental e outra norma consagradora de outro direito ou de diferente interesse constitucional. A regra de solução do conflito é a da máxima observância dos direitos fundamentais envolvidos e da sua mínima restrição compatível com a salvaguarda adequada do outro direito fundamental ou outro interesse constitucional em causa.
Por conseguinte, a restrição de direitos fundamentais implica necessariamente uma relação de conciliação com outros direitos ou interesses constitucionais e exige necessariamente uma tarefa de ponderação ou de concordância prática dos direitos ou interesses em conflito. Não pode falar-se em restrição de um determinado direito fundamental em abstracto, fora da sua relação com um concreto direito fundamental ou interesse constitucional diverso. [25]


5. Conclusões sobre possíveis casos de abuso de autoridade.
Respeitando o princípio da legalidade, o policial desenvolve ações próprias para alcançar o fim da preservação da ordem pública, podendo optar entre intervenções e soluções (decisões) diferentes, posto que o ato de polícia possui como atributo a discricionariedade.
Deve observar, no entanto, os limites do ato discricionário que são: os fins a que se destina o ato, a competência, o procedimento (sua forma) e também os motivos e o objeto. Ato arbitrário representa o contrário do sentido de ato discricionário, pela não observância dessas limitações.
As buscas pessoais devem ser realizadas, ainda que causem eventuais prejuízos de caráter individual, sempre sob o prisma da razoabilidade. Exigível, para tanto, que a restrição de direitos individuais se dê na mínima medida possível, ou seja, no limite do que possa ser considerado necessário e razoável, para alcançar o interesse público.
Para a realização de buscas pessoais, o policial militar possui hoje como instrumento o "Procedimento Operacional Padrão" (POP), amplamente difundido, que prevê a seqüência de ações, a fundamentação legal da intervenção e preciosas orientações que o auxiliam a agir dentro dos limites do ato policial discricionário. Esse padrão institucional de procedimentos, além de garantir uma possível uniformidade de ações, também representa segurança ao agente, como garantia de que ele estará alinhado à doutrina operacional da Instituição.
As próprias limitações impostas pela observância dos direitos e garantias constitucionais encontram-se especificadas no art. 3º e 4º da Lei 4.898/65 ("Lei de Abuso de Autoridade"). Consistem em verdadeiros freios à atuação policial, aplicáveis ao procedimento de busca, sob pena de incorrer o agente em crime de abuso de autoridade, de competência da Justiça Comum (estadual).
De acordo com Fábio Bellote Gomes: "Assim, ocorre o abuso de poder ou abuso de autoridade quando o agente público, embora competente, ao executar ato administrativo excede os limites de suas atribuições legais na prática do ato". [26]
Quanto à busca veicular, que é considerada desdobramento da busca pessoal, observa-se que a doutrina e a jurisprudência reconhecem a sua legitimidade como ação preventiva da Polícias Militares, a partir de abordagens em veículos de transporte individual ou coletivo, justificável pelo desempenho da missão constitucional de preservação da ordem pública, razão pela qual o abuso de autoridade constitui exceção e não a regra nesses casos:
ABUSO DE AUTORIDADE. Vistoria em veículos. Apreensão de mercadoria descaminhada. Não constitui atentado à liberdade de locomoção e nem ofensa à honra e ao patrimônio de pessoa, definidas como crimes de abuso de autoridade, a ação de policiais destacados por seus superiores para, em barreiras em rodovias, efetuarem vistorias em veículos, de transporte individual ou coletivo, em função de prevenção e repressão de delitos, até por exercida no estrito cumprimento de dever legal. (Rec. Crim. n.º 1.456-PR. TRF, 1ª T., Rel. Min. Dias Trindade, j. 8.11.88. DJU 5.12.88, p. 32.075).
Com base na citada legislação especial, praticaria em tese abuso de autoridade o agente que procede à busca e, sem razoável motivo, atenta primeiramente contra a liberdade de locomoção do revistado (inciso XV, do art. 5º e alínea "a", do art. 3º). Considera-se que o procedimento impõe necessária restrição ao direito de locomoção, mormente quando enseja a condução ao Distrito Policial a pretexto de "averiguação", o que, nesse caso, também configuraria indevida privação de liberdade (inciso LIV, do art. 5º da CF).
Atualmente o efetivo policial-militar dispõe de mecanismo eficiente para verificação imediata de eventual situação criminal do sujeito da busca, a partir dos dados de simples documento de identidade ou mesmo de declaração verbal, utilizando-se dos denominados sistemas inteligentes e de pesquisa on line. Portanto, o revistado somente será conduzido do local original da busca se com ele for encontrado - ou em sua bagagem - algum objeto de ilícito, nesse caso na condição de preso em flagrante, ou se for verificada alguma pendência em pesquisa preliminar, tal como um mandado de prisão a ser cumprido, ou na hipótese de se encontrar na situação de foragido de estabelecimento prisional.
Pratica abuso de autoridade também o agente que procede à busca pessoal atentando contra a incolumidade física do revistado (incisos III e XLIX, do art. 5º e alínea "i", do art. 3º da Lei 4.898/65), em razão de que o procedimento deve ser desenvolvido, em princípio, de forma a não causar qualquer prejuízo físico em quem a ele for submetido. Imagine-se, por exemplo, uma busca pessoal em que o agente, a pretexto de impor respeito ao revistado, lhe atinja um golpe, ou, então, uma busca pessoal procedida mediante auxílio de cães farejadores, incitados pelo buscador a agir de modo agressivo contra o revistado.
Ainda, pratica abuso o agente que realiza a busca pessoal submetendo pessoa a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei, indevidamente causando-lhe prejuízo moral (incisos III, X e XLIX, do art. 5º, da CF e alíneas "b" e "h" do art. 4º da Lei 4.898/65). O ato da busca pode provocar certa restrição à intimidade, a vida privada, a honra e a imagem, em razão da sujeição à interferência alheia na esfera da individualidade e da tangibilidade corporal; no entanto, somente tolerável na medida do que seja necessário e razoável, observado o estrito cumprimento do dever legal.
Assim, por exemplo, a revista minuciosa (em que é necessário tirar as roupas do revistado) deve ser realizada em local reservado e somente em situações específicas que justifiquem uma maior restrição de direitos individuais. Já a revista em mulher deve ser realizada por outra mulher, se tal providência não importar retardamento ou prejuízo da diligência, nos termos do art. 249, do CPP e, pelo princípio da igualdade estabelecida entre homens e mulheres, com base no inciso I, do art. 5º, da CF, também a revista em homem deve ser realizada por outro homem, sempre que possível.
Conhecendo os limites de imposição de restrição, o agente público aplicará na atividade policial o conjunto de normas que caracterizam o máximo respeito possível aos direitos individuais do cidadão revistado. Ao mesmo tempo, não incorrerá na prática de abuso de autoridade por excessos passíveis de responsabilização penal, cível e administrativo-disciplinar.

(*) o autor é Major da Polícia Militar do Estado de São Paulo



REFERÊNCIAS

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução: J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: RT, 1997.
BÍBLIA SAGRADA. Tradução dos originais mediante versão dos Monges de Maredsous (Bélgica). Imprimatur Carolus, Card. Archiep. Sti. Pauli, 26-XII – 1957. 52. Ed. São Paulo: Ave Maria.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes e MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora. 1991.
COSTA JÚNIOR, Paulo José da. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. 2. ed. rev. e atua. São Paulo: RT, 1995.
COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. Tradução: Fernando de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 1998,GOMES, Fábio Bellote. Elementos de Direito Administrativo. São Paulo: Manole, 2006
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
GOMES, Fábio Bellote. Elementos de direito administrativo. Barueri: Manolo. 2006.
LAZZARINI, Álvaro. Estudos de Direito Administrativo. 2. ed. São Paulo: RT, 1999.
MARKY, Thomas. Curso Elementar de Direito Romano. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo da Ordem Pública. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1987.
NASSARO, Adilson Luís Franco. A busca pessoal preventiva e a busca pessoal processual. Revista A Força Policial, nº 45, em 2004.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social: Princípios de Direito Político. Tradução: Antônio de P. Machado. São Paulo: Tecnoprint, 1995.
SÃO PAULO (Estado). Procuradoria Geral do Estado. Grupo de Trabalho de Direitos humanos. Instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 1996.
SILVA, José Geraldo da. O Inquérito Policial e a Polícia Judiciária. 2. ed. São Paulo: Leud. 1996.
STEINER, Sylvia Helena de Figueiredo. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua integração ao processo penal brasileiro. São Paulo : RT, 2000.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. v. 3.
TRINDADE, José Damião de Lima. Anotações sobre a história social dos direitos humanos, in Grupo de Trabalho de Direitos Humanos. Direitos Humanos: construção da liberdade e da igualdade. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 2000.


Notas

1.   NASSARO, Adilson Luís Franco. A busca pessoal e suas classificações. Revista A Força Policial, v. 51, 2007.
2.   BÍBLIA SAGRADA. Tradução dos originais mediante versão dos Monges de Maredsous (Bélgica). Imprimatur Carolus, Card. Archiep. Sti. Pauli, 26-XII – 1957. 52. Ed. São Paulo: Ave Maria, p. 130.
3.   COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Tradução: Fernando de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 32.
4.   Idem.
5.   MARKY, Thomas. Curso elementar de direito romano. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.
6.   ISÓCRATES, Discurso panegíricoin Isocrate - Discours, Tome II, Texte établi et traduit par Georges Mathieu et Émile Brémond, Les Belles Lettres, Paris, 2003, p. 53. Citação de fragmento do texto em francês (escrito originalmente em grego), traduzido para o português.
7.   TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. v. 3. p. 34.
8.   SILVA, José Geraldo da. O inquérito policial e a polícia judiciária. 2. ed. São Paulo: Leud. 1996. p. 31.
9.   GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 67 e 191.
10.                ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios de direito político. Tradução: Antônio de P. Machado.São Paulo: Tecnoprint, 1995. p. 39.
11.                BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução: J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: RT, 1997. p. 89.
12.                TRINDADE, José Damião de Lima. Anotações sobre a história social dos direitos humanos, in Grupo de Trabalho de Direitos Humanos. Direitos Humanos: construção da liberdade e da igualdade. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 2000.
13.                STEINER, Sylvia Helena de Figueiredo. A Convenção Americana sobre direitos humanos e sua integração ao processo penal brasileiro. São Paulo : RT, 2000. p. 23.
14.                Idem.
15.                SÃO PAULO (Estado). Procuradoria Geral do Estado. Grupo de Trabalho de Direitos humanos. Instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 1996. p. 50.
16.                No caso da atuação policial-militar, o § 5º, do art. 144, da CF, estabelece que: "às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública (...)"
17.                LAZZARINI, Álvaro. Estudos de direito administrativo. 2. ed. São Paulo: RT, 1999, p. 205.
18.                Lei Federal nº 5. 172, de 25 de Outubro de 1966, art. 78.
19.                MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo da ordem pública. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 130.
20.                DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p, 116.
21.                Decreto-Lei n.º 3.689, de 3 de outubro de 1941 (CPP), art. 244: "A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar".
22.                Idem. Ob. cit., p. 12. p. 111.
23.                COSTA JÚNIOR, Paulo José da. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. 2. ed. rev. e atua. São Paulo: RT, 1995, p. 12.
24.                Idem.
25.                CANOTILHO, José Joaquim Gomes e MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora. 1991. p. 134.
26.                GOMES, Fábio Bellote. Elementos de direito administrativo. Barueri: Manolo. 2006. p. 42.





Fonte: http://jus.com.br/revista/texto/18314/abordagem-policial-busca-pessoal-e-direitos-humanos